sábado, 20 de dezembro de 2014

Colheita (Jim Crace)

Tudo começa com o fogo: o de três recém-chegados com pretensões a instalar-se na aldeia e o incêndio provocado na casa senhorial. Na mente de todos, os dois acontecimentos confundem-se. Em menos de nada, os forasteiros são indicados como os responsáveis e o castigo decretado é rápido e implacável. Mas o que ninguém pode saber é que o incêndio é apenas o ponto de partida para tudo o que, ao longo de sete dias, reduzirá a cinzas a vida tal como todos na aldeia a conheciam. Pelos olhos e pela voz de Walter Thirsk, habitante da aldeia há longos anos, mas, ainda assim, visto como não pertencendo ao lugar, o percurso da estranheza ao medo e à destruição ganha uma vida própria, na ominosa certeza de que nada ficará igual. 
Um dos aspectos mais interessantes deste livro é a forma como o autor constrói um cenário que, apesar das suas características concretas, consegue ser ambíguo o suficiente para se poder situar em qualquer ponto do tempo. A aldeia não tem nome, tal como os acontecimentos não têm data. E, por isso, os muitos elementos de mudança que vão surgindo ao longo da narrativa permitem associações a diferentes tempos e possibilidades. O ponto concreto da acção é deliberadamente ambíguo, ainda que os acontecimentos em si não o sejam. E isto confere à narrativa uma muito cativante aura de mistério, criando um poderoso contraste com a dominante desolação.
Porque é ela, de facto, que domina ao longo de todo o percurso. A história é, toda ela, aliás, uma penosa caminhada até à devastação. E, ao entregar a narração a uma personagem que é, ao mesmo tempo, presente e distante, o autor consegue reflectir bem o impacto dessa progressiva perda, ao mesmo tempo que define os limites que vivem na mente das personagens. Toda a narrativa é feita de contrastes e de mudanças. O progresso sem escrúpulos anunciado por Master Jordan opõe-se à vida comunitária longamente definida. O abrupto florescer do medo põe em causa a constância da suposta boa vizinhança. E a presença de uma justiça não muito justa leva a questionar a falibilidade humana, principalmente quando há interesses ou razões pessoais envolvidas.
E se há, na construção do enredo, motivos mais que suficientes para que fazer com que a leitura valha a pena, há ainda um ponto de ligação que torna tudo ainda mais marcante. Falo, é claro, da escrita do autor, fluída, belíssima, com uma atenção ao detalhe que faz com que o ritmo pausado da narrativa faça todo o sentido, por permitir contemplar todos os aspectos do cenário, e adaptada em tudo ao rumo progressivamente mais sombrio dos acontecimentos.
História e escrita conjugam-se, pois, num equilíbrio praticamente perfeito, para dar forma a uma história complexa e, em certos aspectos, perturbadora, mas que fica na memória tanto pelas questões que evoca como pelas emoções que desperta. A soma de tudo é um livro muito bom.

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