segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Viagem ao Coração dos Pássaros (Possidónio Cachapa)

Invulgar desde antes do nascimento, Kika está destinada a receber em si um dom e, na companhia dos que deixaram a vida, mas ficaram presos a ela, a influir na vida dos que a rodeiam. Mas, no meio isolado onde vive, e filha de um pai que partiu e de uma mãe pouco afectuosa, Kika tem de aprender sozinha a comandar a sua diferença. E, dos primeiros anos de vida até à descoberta do seu próprio destino, Kika será a voz do inexplicável, para os outros e para si, numa existência que tem tanto de improvável como de estranhamente familiar.
Sendo este um livro relativamente breve, mas, ainda assim, vastíssimo nas surpresas que apresenta ao longo do caminho, um dos aspectos que mais surpreende é a forma como, inesperado no rumo da história e surpreendentemente complexo nas teias que unem personagens e acontecimentos, lê-se, ainda assim, de uma forma incrivelmente simples. É fácil compreender Kika, e, contudo, a sua natureza e indefinível. E, quanto ao seu percurso, há uma estranha naturalidade na forma como é descrito, apesar de tudo o que tem de sobrenatural. 
No fundo, mais que o mistério de Kika e dos seus dons, sente-se a presença de algo de impalpável, como que uma inocência que, nem sempre sendo a mais ajustada aos comportamentos de Kika, acaba por ser, ainda assim, o traço que mais se destaca. Uma inocência que, por mais perturbadores que possam ser, para a protagonista, os acontecimentos, parece ser, ainda assim, a base que fundamenta o seu papel. De criança ou de mulher capaz de ver para lá do mundo visível, e de viver uma história que, nem sempre sendo a sua, acaba por sempre convergir em si.
Este retrato de uma vida complexa, contada de forma aparentemente simples, adquire este tom tão próprio também devido à escrita. Cativante e agradável, sem elaborações desnecessárias e, contudo, de uma harmonia belíssima, também a escrita reflecte os contrastes e o fascinante equilíbrio que definem a história, adaptando-se quer à aparente inocência da protagonista, quer à forma como a sua caminhada a vai moldando em algo mais que uma criança com um dom invulgar.
Cativante e surpreendente, este é, pois, um livro que esconde, por detrás da aparente simplicidade, um percurso de complexidades insuspeitas. Misterioso, fascinante e, apesar disso, de uma inocência enternecedora, proporciona, sem dúvida, uma leitura memorável. Muito bom.

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